Na coluna anterior (01/02), ao propor reflexão a respeito da importância de se adaptar à linguagem neutra no dia a dia, buscou-se compreendê-la como mais um reflexo daquilo que a língua sempre significou – tenhamos nós esta consciência ou não: uma ferramenta que, além de imprescindível a comunicação e oficialização de documentos, serve aos falantes como forma de validação das diversas formas de se reconhecer no mundo, especialmente em se tratando do gênero (masculino, feminino, não-binário) com o qual se identifique.
Mas é claro que nem tudo é tão simples e, a fim de perceber os caminhos tortuosos que o uso da linguagem neutra pode nos impelir a seguir indistintamente, sirvo-me da fala da professora do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal de Sergipe e editora-chefe da Revista da ABRALIN (Associação Brasileira de Linguística), Raquel Freitag: “linguagem neutra é uma coisa que não existe. Não existe neutralidade, em nada no mundo”.
Seu discurso pode ser sentido como uma punhalada cruel aos que se dedicam tanto a desmistificar o uso dessa linguagem cotidiana quanto a contextualizá-la frente aos desafios impostos por uma cultura que ainda conserva padrões normativos rígidos e excludentes. Entretanto, se estendermos sua linha de raciocínio ao âmbito político, por exemplo, vamos nos deparar com um impasse que vale o questionamento: que tipo de neutralidade é essa que estamos buscando?
É possível que, na ânsia por tratamentos justos a todos os seres, a linguagem neutra acabe por maquiar as desigualdades prementes das sociedades mundo afora. O mundo inteiro vem buscando, através da língua, estabelecer condições de acolhimento comunicativo e liberdade de expressão – e essa busca é legítima. As armadilhas começam a aparecer quando aplicamos a neutralidade linguística sem adaptação de critérios e sem levar em consideração os contextos de fala e escrita em que são tidos como ferramenta.
Exemplo dessa aplicação é a disseminação da linguagem neutra em textos científicos. Ao evitar usar palavras que diferenciam o gênero sexual por definição – como é o caso de substituir os termos “mulher”, “mãe” ou “gestante” pela expressão “pessoa gestante” em pesquisas relacionadas à saúde feminina –, corremos o sério risco de ver, no longo prazo, a presença da mulher na ciência perder o pouco de força que tem levado séculos para conquistar no ambiente acadêmico. Isso porque o fazer científico se vale, entre outras coisas, de palavras-chave para fortalecer sua notoriedade e ter estudos importantes relacionados a pesquisas de mesma essência.
Outra corda na qual tropeçamos ao ignorar a necessidade de atentar-se a cada contexto de uso da linguagem neutra é o fato que já foi repetido por mim à exaustão: a língua serve aos falantes – não o contrário – e, por essa razão, é reflexo da realidade (seja ela justa ou não). Dessa forma, desviar-se do fato de que não existe neutralidade na prática – até um voto nulo ou branco revela posicionamento – pode beneficiar ainda mais o sistema opressor no qual estamos inserides.
Embora a discussão não possa ser concluída em poucas linhas, finalizo esta breve proposta reflexiva concordando com Freitag: “eu advogo por uma a linguagem inclusiva de gênero, que está na pauta dos movimentos feministas há muito tempo”.
Como encontrar um equilíbrio entre os mais variados ambientes discursivos? Só o tempo, o discernimento e a coerência poderão nos dizer.
.
.
.